"Cumprimento o deputado federal Aécio Neves que encarna, neste momento, a memória de Tancredo Neves e foi companhia em todos aqueles episódios que marcaram, há 40 anos, a noite de 14 de março", saudou o ex-presidente José Sarney, ao iniciar seu pronunciamento, nesta quarta-feira (19/03), na Câmara dos Deputados, na Sessão Especial da Casa que celebrou os 40 anos da redemocratização do país.
Presidente empossado em 15 de março de 1985, José Sarney relembrou aos parlamentares e convidados presentes na homenagem a noite da véspera da posse que seria do presidente Tancredo Neves, primeiro civil na Presidência da República desde 1964. Naquela noite, Tancredo foi internado em Brasília, após sentir fortes dores abdominais.
À época secretário particular do presidente, Aécio esteve presente em todos os atos da agenda política que marcaram o processo de redemocratização e das manifestações da campanha pelas Diretas Já. Foi quem também acompanhou o então presidente e avô durante os 39 dias de internação. Tancredo faleceu em 21 de abril.
"Triste o povo que não conhece e valoriza a sua história, pois ele terá muito maior dificuldade para construir o seu futuro. Muitos brasileiros merecem hoje ser homenageados. Mulheres, homens e jovens de todas as partes do país que, com seu apoio e mobilização, tornaram possível que a transição ocorresse. Homens públicos como Ulysses (Guimarães), Teotônio (Vilela), (Franco) Montoro e tantos outros devem sempre ser lembrados, pois foram fundamentais para que chegássemos até aqui", afirmou Aécio, em seu pronunciamento.
Emocionado, fez também um agradecimento pessoal, em nome de sua família, ao ex-presidente José Sarney:
"Devo deixar, por dever de justiça, uma palavra de reconhecimento afetivo, mas também político, ao papel essencial e decisivo desempenhado pelo presidente José Sarney, que todos nós hoje homenageamos, na consolidação do processo de redemocratização do país. Sua absoluta fidelidade aos compromissos democráticos de Tancredo e sua liderança na garantia de elaboração de uma Constituição democrática e justa, nos permitiram chegar até aqui, mesmo que atravessando turbulências e enfrentando, ele próprio, inúmeras incompreensões. A vossa excelência, presidente José Sarney, em nome da família do presidente Tancredo Neves, mas também como homem público e como cidadão brasileiro, o meu mais profundo reconhecimento", disse Aécio.
Fotos: Alex Loyola/Liderança do PSDB na Câmara
Leia na íntegra o pronunciamento de Aécio Neves no Senado Federal:
Volto a esta tribuna, meus amigos e minhas amigas, que ocupei ao longo de toda a minha vida pública, num momento extremamente especial. Estamos aqui todos reunidos para celebrar os 40 anos da redemocratização do Brasil. Eu digo sempre que triste é o povo que não conhece e não valoriza a sua história, porque esse povo vai ter muito mais dificuldades de construir o seu futuro.
Inúmeros brasileiros merecem hoje aqui ser homenageados. São mulheres, homens, jovens, de todas as partes do país, que, com seu apoio e sua mobilização, tornaram possível que a transição ocorresse. Homens públicos como Ulysses, Teotônio, Montoro, Zé Richa, Mário Covas e tantos outros devem sempre ser lembrados e homenageados, porque foram fundamentais para que chegássemos até aqui.
Peço licença a todos que participam desta histórica sessão para, neste meu despretensioso pronunciamento, me ater ao presidente Tancredo Neves e ao seu decisivo papel em todo esse processo que nos trouxe ao mais longo período democrático de toda a nossa história.
Antes disso, devo deixar, por dever de justiça, uma palavra de reconhecimento afetivo, mas também político, ao papel essencial e decisivo desempenhado pelo presidente José Sarney, que todos nós hoje homenageamos na consolidação do processo de redemocratização do Brasil. Sua absoluta fidelidade aos compromissos democráticos de Tancredo e sua liderança na garantia da elaboração de uma Constituição justa e democrática nos permitiram chegar até aqui, mesmo atravessando turbulências e enfrentando V.Exa., presidente José Sarney, inúmeras incompreensões.
Peço, neste instante, às senhoras e aos senhores licença para trazer, desta tribuna, um depoimento muito, muito pessoal, que tive a oportunidade de fazer algumas vezes ao longo desses 40 anos que nos separam daquele histórico 15 de março de 1985 e ontem mesmo, no Senado.
Eu gostaria de falar hoje aqui sobre Tancredo o homem, sobre Tancredo o líder, que, em silêncio, nos relembrou uma antiga, verdadeira e valiosa lição, a de que existem causas que valem muito mais do que nós mesmos. Não vou me ater à biografia formal do presidente Tancredo.
Em homenagem a ele e aos desafios que, como parlamentares, enfrentamos todos os dias no Congresso Nacional, eu vou falar aqui hoje de escolhas, porque foram as escolhas que Tancredo fez ao longo de toda a sua vida que o transformaram no homem que ele foi, o homem capaz de liderar multidões e enternecer indivíduos.
Dizem que os verdadeiros líderes são raros, porque são poucos os homens capazes de se fundir e se confundir em determinado momento da história com o seu próprio povo. Líderes são fundamentais não apenas pelas decisões que são capazes de tomar como também por aquilo que são capazes de representar. Tancredo foi um líder na acepção maior que essa palavra possa conter. Para ser um líder fez as escolhas que fez, e as escolhas que fez o fizeram um líder ainda maior.
À primeira vista, parecem existir dois Tancredos: um extremamente ameno no trato e nas palavras, outro corajosamente radical nas ações e nos gestos. A fusão dos dois fez um homem por inteiro, comprometido sempre com a ordem democrática, absolutamente leal aos compromissos assumidos. Honrando sempre a palavra empenhada, transformou-se em um interlocutor necessário na cena política brasileira durante décadas e nunca buscava os holofotes. Ele costumava dizer: "na política só se lembram de mim na hora da tempestade".
Tancredo assumiu o lugar de destaque nacional em 1953. Com apenas 43 anos de idade, foi escolhido pelo presidente Getúlio Vargas como seu ministro da Justiça. Havia sido opositor do Estado Novo, advogava para trabalhadores e chegou a ser preso duas vezes naquele período, mas considerava que Getúlio, ao ser eleito, ganharia legitimidade popular. Foi fiel ao presidente Vargas até o fim.
Em 1950, na última reunião do Ministério, o governador Brandão, quando ministros militares já se afastavam de Getúlio e do cumprimento da Constituição defendendo o afastamento do presidente, Tancredo pediu, em reunião ministerial, autorização a Getúlio para ir pessoalmente voz de prisão aos militares rebelados. "Mas você pode ser morto", disse um dos Ministros presentes. "A vida nos reserva poucas oportunidades de morrer por uma boa causa, e essa é uma delas", respondeu Tancredo.
Tancredo costumava se lembrar da última noite de Getúlio com enorme emoção. Sempre dizia, que não conhecera ninguém cujo senso do dever e o amor ao país fossem tão fortes.
Em reuniões de família, lembrava a noite em que já se preparava para sair do Palácio do Catete quando o presidente Vargas o chamou e lhe entregou sua caneta pessoal, que nós guardamos hoje com muito carinho. "Uma lembrança destes dias conturbados", disse a ele o presidente. Tancredo guardou a caneta e soube mais tarde que o presidente havia acabado de utilizá-la para assinar a Carta Testamento.
Minutos depois, quando saía do prédio, escutou o tiro com o qual Getúlio se suicidara. Correu aos seus aposentos e ajudou a filha dele, Alzira, a socorrer o pai. Dizia que os olhos do presidente circularam pelo quarto, passaram pelos dele até se fixarem nos da filha. Ele morreu olhando para ela.
Extremamente abalado, Tancredo chegou para o enterro do presidente Vargas em São Borja, no Rio Grande do Sul. Fazia muito frio. Osvaldo Aranha lhe emprestou um cachecol que ele guardou dobrado na sua gaveta de memórias pessoais por toda a sua vida, e eu o guardo até hoje.
De São Borja, enviou um telegrama ao então governador de Minas Gerais Juscelino Kubitschek, denunciando a ação das forças golpistas. Há quem pense que o suicídio de Getúlio tenha atrasado em 10 anos o golpe militar. O ano de 1964 poderia ter chegado em 1954.
Em 1961, a renúncia do presidente Jânio Quadros surpreendeu todo o país. O vice-presidente João Goulart se encontrava na China, e começaram as articulações para impedir a sua posse. Tancredo divulgou um manifesto à Nação, pedindo respeito à ordem democrática e que fosse garantida a posse do Vice-presidente. O ambiente político se agravava. Prioritário naquele momento, era garantir que Jango chegasse ao País e assumisse o Governo.
Diante da radicalização de setores militares, surgiu a solução parlamentarista. Tancredo vai de avião ao encontro de Jango no Uruguai. Haviam sido ambos Ministros de Getúlio. A confiança entre os dois fora selada na antecâmara de uma tragédia, em um momento de extrema crise em que o caráter e a fibra de um homem não podem se ocultar atrás de discursos ou de palavras. Por isso, tinha que ser Tancredo e não outro a entrar naquele avião. Importante, como disse, naquele momento era garantir que o Presidente tomasse posse, era evitar que 1964 chegasse já em 1961.
Jango tomou posse, Tancredo foi escolhido primeiro-ministro. Deixou o posto de Chefe de Governo em 1962 para disputar as eleições para esta Câmara dos Deputados. Eleito, transformou-se nesta Casa em líder do Governo João Goulart.
Chegou 1964. O presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, presidente Hugo Motta, desta cadeira em que está sentado hoje V.Exa., declara vaga a Presidência da República, apesar de o presidente João Goulart se encontrar em solo brasileiro.
Diante de uma Casa silenciosamente acovardada, escutam-se algumas vozes e gritos inconformados neste plenário. Quem ouvir com atenção o áudio da sessão — eu o ouvi várias vezes — vai escutar, nesses gritos, as vozes da consciência nacional e uma delas se destaca: "Canalhas! Canalhas! Canalhas!". Era Tancredo.
Naquela época, Almino Afonso conta: "Até hoje me recordo com espanto do deputado Tancredo Neves, em protestos de uma violência verbal inacreditável para quantos acostumados à sua elegância no trato o vissem encarnando a revolta que sacudia a consciência democrática do país. Não deixava de ser chocante ver a altivez da indignação de Tancredo e o silêncio conivente de muitas lideranças do PSD" encerra Almino.
O jornalista José Augusto Ribeiro disse que ao sair dessa sessão, o indignado Tancredo deu uma entrevista premonitória: "Acabam de entregar o Brasil a 20 anos de ditadura militar" — disse ele". Foram 21.
Tancredo enfrentou os soldados para se despedir pessoalmente de Jango, e o 1964 adiado tantas vezes finalmente chegara. O primeiro momento fortemente simbólico foi a eleição do Marechal Castelo Branco. Tancredo foi o único deputado do PSD a negar seu voto ao Marechal.
Vieram as cassações, os inquéritos policiais militares, nem ex-presidentes da República foram poupados.
Juscelino foi convocado a depor várias vezes, mas não foi sozinho. Tancredo acompanhou os depoimentos, solitário e solidário. Exilado, o talvez mais festejado Presidente que o País já tivera, dirigiu-se ao aeroporto para deixar o Brasil, era o Presidente bossa nova, era um ex-Presidente da República que seguia rumo ao exílio.
Apenas três pessoas acompanharam o JK até o avião, duas eram da família, a outra era Tancredo. E uma das primeiras cartas escritas de próprio punho pelo ex-presidente, logo ao desembarcar no exílio, foi dirigida exatamente a Tancredo. Escreveu Juscelino: "Lembro-me bem que a sua, Tancredo, foi a última mão que apertei antes de me dirigir ao avião. Creio que a democracia terá forças para se levantar, sobretudo, porque sobraram homens como você, que a poderão irrigar, mantendo-lhe o vigor para novas arrancadas". Ele estava certo.
Seguem-se a partir daí anos de um paciente ostracismo para Tancredo. Morre o presidente João Goulart no Uruguai. O governo militar, em princípio, se recusa a permitir que ele seja enterrado no Brasil. Começam diversas articulações. Tancredo recusa conselhos e vai ao General Golbery do Couto e Silva. Diz ele: "Ninguém pode negar a um Presidente o direito de descansar entre o seu povo".
E, quando a conveniência lhe indicava o contrário, lá estava Tancredo, de novo, em São Borja. Mais uma vez, contamos com a memória de Almino Afonso, que relembrava: "Tancredo era a única liderança de porte nacional presente no cemitério".
Morre Juscelino. De pé, durante toda a noite e toda a madrugada, como numa reverência cívica, Tancredo velou o presidente. E é de Tancredo o mais forte e emocionado discurso em homenagem ao ex-presidente pronunciado aqui desta mesma tribuna que ocupo hoje.
Trinta anos depois de 1954, é a vez de 1984, a campanha das Diretas Já ocupou as ruas e o coração do país. Tancredo participou, articulou, discursou, mas conhecia ele, como ninguém, a história, a política e o Brasil. Ali estavam maduras as condições para deixar 1964 para trás, ideal — é claro! — que fosse pelo voto direto, se não pudesse ser, que fosse por outro caminho. Importante era, naquele momento, abrir a porta de saída. Apenas protestar não fazia mais sentido.
Os anos de 1954 e 1961 ainda estavam muito vivos em sua memória; mas, a travessia, senhoras e senhores, caminho para terminar, não foi feita sem riscos e sobressaltos. A arquitetura daquele processo precisava de estratégia, de coragem e, principalmente, do apoio da sociedade e de todas as forças democráticas do país, independentemente de suas diferenças ou convicções ideológicas. O que estava em jogo, a ruptura definitiva com os 21 anos de autoritarismo, justificava toda essa união.
Logo após a homologação de seu nome como candidato das oposições no colégio eleitoral, sob o olhar incrédulo de alguns assessores e de inúmeras lideranças políticas que acreditavam que Tancredo deveria concentrar seus esforços nos votos do colégio eleitoral, ele marca uma intensa agenda de comícios e atos políticos por todo o Brasil. "Precisamos que as pessoas continuem mobilizadas nas ruas", dizia ele serenamente alerta, "a transição ainda não se concluíra".
O presidente Sarney é testemunha dos sobressaltos que vivemos até o momento da sua posse. Mesmo após sua vitória no Colégio Eleitoral, ele manteve a vigilância. Ter sido testemunha de outros episódios marcantes da história o obrigava a isso.
E rapidamente, sem alarde, organizou uma viagem ao exterior com um grupo pequeno de assessores — éramos oito pessoas apenas — para se encontrar com as principais lideranças democráticas da Europa e das Américas, buscando ali o testemunho e o apoio desses líderes à transição que se iniciara no Brasil e que, para ele, só estaria concluída com sua posse no histórico 15 de março que celebramos hoje.
E num ato extremo de amor ao Brasil, de amor à democracia, retardou o quanto pôde a cirurgia à qual deveria se submeter, com receio de que sua eventual ausência viesse a estimular forças reacionárias, ainda inconformadas com o iminente fim do regime, a algum ato extremo de retrocesso. O restante da história todos nós conhecemos.
Mas me permito aqui um registro pessoal, acreditando que os erros devem nos servir de lição exatamente para não voltarmos a cometê-los. Lembro-me, senhoras e senhores, colegas parlamentares, que até na véspera da eleição que ocorreria na manhã do dia seguinte, em 14 de janeiro de 1985, decolamos aqui de Brasília para uma reunião em Minas com o então Senador Itamar Franco, último ato político antes da eleição. Fomos e voltamos naquela mesma noite.
Ao entrarmos no avião para decolarmos de volta, ele perguntou a mim e às outras duas pessoas que o acompanhavam: "Notícias do PT?" Não, nós não tínhamos.
Até o último instante, Tancredo aguardou que o Partido dos Trabalhadores, cuja criação ele saudara cinco anos antes e considerava extremamente importante para o país e para a democracia, como realmente o é, se unisse aos demais democratas para todos, juntos, derrotarmos definitivamente o regime autoritário no Brasil. Não era uma questão de votos — ele já os tinha —, mas o simbolismo que a união de todas as forças democráticas traria naquele momento ainda carregado de incertezas.
Mas não. Infelizmente, o PT naquele momento negou a Tancredo e ao Brasil seu apoio. E mais do que isso, expulsou seus três deputados: José Eudes, Airton Soares e Bete Mendes, que homenageio neste ato, e que ousaram ouvir naquele instante a consciência nacional e as suas próprias consciências, para que o presidente Tancredo pudesse, no primeiro instante, logo após declarada a sua vitória, subir nesta mesma tribuna onde está hoje o presidente Hugo Motta, para anunciar ao Brasil: "Essa foi a última eleição indireta deste país".
A esses parlamentares e a todos os brasileiros anônimos ou não, que participaram daquele extraordinário movimento cívico, o meu reconhecimento.
Mas a história, senhoras e senhores, seguiu seu curso. E de novo era ele, Tancredo, que precisava tomar e conduzir aquele avião, um novo voo para um novo resgate da ordem democrática. E ele nos lembrava sempre: "A pátria não é a aposentadoria dos heróis, mas permanente tarefa a cumprir".
Getúlio, Juscelino e Jango sabiam do que ele estava falando, sabiam o que havia custado chegar até ali.
O avião, em busca da rota democrática, decolou novamente. Dessa vez, o piloto não desembarcou, mas conduziu o voo a um porto seguro, porque lá encontrou a figura serena, altiva e democrata do presidente José Sarney.
Afonso Arinos — o presidente Sarney acabou de nos lembrar disso aqui — disse: "Alguns homens dão a vida pelo país. Tancredo deu mais: deu a morte".
Encerro lembrando os olhos marejados do presidente Tancredo, recordando, com respeito e reconhecimento, o extremado senso de compromisso de Getúlio com o país. "Ele sabia aquilo que estava em risco", costumava nos dizer Tancredo nos nossos almoços de família. "Vocês não imaginam o que foi a multidão que acompanhou o funeral do presidente Vargas. Foi ela, em torno do caixão do presidente, que selou o pacto que impediu naquele momento o retrocesso da ordem democrática". Tancredo insistia em nos explicar e nos ensinar.
Mal sabia Tancredo que, 31 anos depois, em 1985, outra multidão velaria o corpo de outro presidente e que ele também deixaria a vida para entrar na história.