O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) embargou as atividades da empresa Suzano S.A. no município de São Mateus, no norte do Espírito Santo, após a destruição parcial de um cemitério histórico de pessoas escravizadas, localizado na Fazenda Cachoeira do Cravo. O local, protegido por legislação municipal desde 1989, é reconhecido como sítio arqueológico e guarda forte valor simbólico por abrigar os restos mortais de dezenas de pessoas negras escravizadas, além de estar ligado à trajetória de resistência da líder quilombola Constância D’Angola.
Segundo o Iphan, a Suzano ignorou condicionantes previstas na licença ambiental, especialmente a obrigatoriedade de obter autorização prévia de órgãos de patrimônio, como determina a Instrução Normativa nº 01/2015. A destruição ocorreu por meio de máquinas da construtora Macplan, contratada pela Suzano, e expôs fragmentos ósseos humanos em meio a solo revolvido. A área estava sendo ocupada sem qualquer sinalização ou delimitação de sua importância histórica.
Durante vistorias técnicas realizadas nos dias 24 e 30 de julho, o Iphan constatou as irregularidades e oficializou o cadastro do local como Sítio Arqueológico Fazenda Cachoeira do Cravo. A empresa foi notificada e as atividades no imóvel de 579,8 hectares foram suspensas. O Iphan agora exige que a Suzano apresente um relatório detalhado das intervenções feitas e participe da definição de medidas compensatórias, que podem incluir estudos arqueológicos, ações de reparação simbólica e escuta das comunidades afetadas.
“Mesmo que o sítio não estivesse formalmente registrado, sua existência era de conhecimento público, respaldada por tradição oral e protegida pela Lei Municipal nº 39/1989, que reconhece o conjunto histórico da fazenda”, afirmou Yuri Batalha de Magalhães, chefe da Divisão Técnica do Iphan.
Além da empresa, a Prefeitura de São Mateus também foi responsabilizada por omitir, no processo de licenciamento, a existência da proteção legal sobre o território. O Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf) afirmou que poderá suspender a licença ambiental da Suzano, dado o descumprimento da condicionante nº 7, que exige a anuência de órgãos de proteção ambiental e cultural.
A área destruída é identificada pelas comunidades locais como o “Cemitério dos Escravizados”. Tradições orais indicam que ali foi enterrada Constância D’Angola, após ter seu filho morto de forma brutal na época da escravidão. Constância é lembrada como símbolo da luta negra e da resistência quilombola, tendo liderado fugas e embates contra a escravidão na região.
Durante a vistoria do Iphan, representantes da comunidade quilombola Córrego Seco relataram que participaram de uma reunião com a Suzano, intermediada pelo Ministério Público, para discussão de compensações. Segundo os quilombolas, o encontro foi desequilibrado: nenhuma autoridade pública acompanhou os moradores, e a empresa enviou oito advogados. Eles denunciam pressão para assinatura de documentos pouco legíveis.
Entre as propostas comunitárias estão a construção de um memorial dedicado a Constância D’Angola, melhorias na ponte histórica da fazenda, abertura de caminhos tradicionais e ações de valorização cultural.
O caso também despertou a atenção do Ministério Público Federal, que pode judicializar o episódio, caso não haja acordo administrativo. O Iphan já solicitou ao Idaf o envio de dados sobre outras licenças concedidas à Suzano, para verificar possíveis reincidências em violações ao patrimônio histórico em outras regiões.
Memória viva e território ancestral
Foto: Secom/ES
A Fazenda Cachoeira do Cravo integra um território de memória negra e indígena no norte capixaba, com importância histórica reconhecida. Fundada na segunda metade do século XIX pelo Barão de Aymorés, o local foi um centro escravocrata com produção de açúcar e café. Os vestígios arqueológicos encontrados revelam camadas de ocupação, sofrimento e resistência de povos escravizados e indígenas ao longo dos séculos.
“Esse é um território que carrega dor, luta e identidade. Precisamos levantar as histórias não contadas, especialmente das comunidades quilombolas da região”, conclui Yuri Batalha.