Um fenômeno social e econômico vem ganhando força em diversas regiões do Brasil, especialmente no Nordeste: trabalhadores em situação de vulnerabilidade estão recusando vagas com carteira assinada por receio de perder o Bolsa Família e os benefícios adicionais vinculados ao programa.
Embora à primeira vista pareça contraditório, a escolha tem base em um cálculo racional. Em muitos casos, o valor líquido somado do Bolsa Família, descontos em contas de energia elétrica (tarifa social), acesso a programas habitacionais e outras políticas públicas, ultrapassa o que seria recebido em empregos formais de baixa remuneração — muitas vezes temporários, com descontos previdenciários e altos custos indiretos, como transporte e alimentação.
“Trabalhar formalmente pode significar ganhar menos”
É o que relata Maria do Socorro, moradora de uma comunidade rural no interior do Piauí. Com três filhos pequenos, ela recebe pouco mais de R$ 800 mensais do Bolsa Família, além de tarifa social de energia e prioridade na fila da habitação popular. Quando foi chamada para trabalhar como auxiliar de serviços gerais em uma empresa local, a proposta era de um salário mínimo, com contrato temporário de três meses.
“Se eu aceitasse, perderia o Bolsa Família. Ia ter que gastar com passagem, comida fora de casa, roupa. E no fim ainda podia ser mandada embora. A conta não fecha”, explica.
Incentivos invertidos
Especialistas apontam que essa situação configura o que se chama de "armadilha da pobreza": quando programas sociais, embora essenciais para combater a miséria, acabam desincentivando a entrada no mercado de trabalho formal por falta de mecanismos de transição.
“O problema não é o Bolsa Família, mas a ausência de uma política que permita às famílias migrarem com segurança para uma condição de autonomia. Hoje, o sistema pune quem tenta sair da dependência do auxílio”, explica a economista Silvia Almeida, pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Empregos formais: instáveis e mal remunerados
No Nordeste, onde o fenômeno se mostra mais evidente, a maioria das vagas formais disponíveis são em setores como agricultura, construção civil e comércio, com vínculos temporários e salários baixos. Dados do CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) apontam que, em 2024, mais de 60% das admissões com carteira assinada no Maranhão e no Piauí foram para contratos de até 6 meses.
“É preciso considerar o contexto. Aceitar um emprego por três meses, perdendo um benefício que garante segurança alimentar e acesso a outros direitos, é um risco que muitos não podem correr”, afirma o sociólogo Paulo Diniz, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP).
Governo busca soluções
O governo federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social, afirma estar ciente do problema e estuda alternativas. Uma das medidas já implementadas é a chamada "regra de proteção", que permite a manutenção parcial do Bolsa Família por até dois anos após o ingresso no emprego formal, desde que a renda familiar não ultrapasse o dobro da linha da pobreza.
No entanto, especialistas defendem a ampliação da medida e a criação de uma política de transição mais robusta. “Não se trata de cortar benefícios, mas de garantir que o trabalho compense mais do que o assistencialismo. Do contrário, as famílias continuarão presas nesse ciclo”, alerta Silvia Almeida.
Mais do que um dilema individual, um desafio estrutural
A situação expõe um desafio estrutural do país: como conciliar a proteção social necessária com a criação de condições reais para que os cidadãos avancem em direção à autonomia financeira. Enquanto isso não acontece, muitos seguem fazendo a escolha possível — e não a ideal.





